Trabalho escravo dos estudantes na URSS

Ano de 1988, República Socialista Soviética do Quirguistão. Alunos da escola secundária nº 9 da cidade de Jalal-Abad durante o trabalho em um campo de algodão. Foto de M. Ashirbaev / Fotocronologia da TASS

“Você pode não ser médico, mas colhedor de algodão você é obrigado a ser!”
(Ditado dos estudantes do Instituto Médico de Tashkent, 1983)

O que mais me impressionou durante a campanha de colheita de algodão não foi apenas o trabalho forçado, gratuito, escravo — mas também as “comodidades” como a chamada “Sala de Higiene das Moças”.

Imaginem quatro longos barracões, colocados paralelamente entre si, no meio dos campos de algodão da Estepe da Fome, em Jizzakh, no “socialista” Uzbequistão.

De um lado — uma estrada, além da qual, campos de algodão. Do outro lado — mais campos de algodão. Um pequeno espaço entre os campos e os barracões — o local de “vida doméstica” dos estudantes, que haviam sido ENVIADOS OBRIGATORIAMENTE para colher algodão.

Ali havia um tanque de água, no chão algumas caldeiras grandes onde se fervia água, e um pouco mais adiante, perto do campo, estava “aquilo” — a tal “Sala de Higiene das Moças” (escrito exatamente assim!) — que não deve ser confundida com banheiro!

A ESTRUTURA ERA DESTINADA EXCLUSIVAMENTE a PROCEDIMENTOS HIGIÊNICOS, NÃO PARA NECESSIDADES FISIOLÓGICAS.

Pois bem. A construção consistia em quatro tábuas de borda (chamadas gorbili). Sabe o que é isso? São as laterais do tronco da árvore, o que sobra quando se corta uma viga. É um resíduo, uma “tábua pela metade”, plana de um lado e arredondada do outro. Em resumo, lixo de serraria. Quatro dessas tábuas, ou até segmentos delas (divididos ao meio), com altura de uma pessoa, foram fincadas no chão como postes.

Nelas esticaram um pedaço de estopa. Mas(!) não cobria toda a altura, pois ou deram pouca estopa desde o começo, ou alguém roubou. Assim, ela cobria apenas uma faixa, uns 60 centímetros de altura. Não fazia sentido colocá-la rente ao chão — não cobria nada. Tampouco fazia sentido esticá-la no topo. Acabaram por esticar a faixa entre “um pouco acima dos joelhos” até “nível do peito”.

A expectativa era que nossas colegas estudantes entrassem ali para fazer sua higiene íntima, isto é, se lavarem.

Conseguiu visualizar? Use a imaginação. Você, uma caloura do curso de medicina do Instituto Médico de Tashkent, entra nesse “negócio” (a 20 metros dos barracões), aos olhos de quatrocentos colegas (quatro barracões, cem pessoas em cada — 400 estudantes de primeiro ano), e começa a… se lavar! Sua cabeça aparece por cima da estopa, e as pernas são visíveis até os joelhos. Ah, sim: a estopa cobria apenas três lados da estrutura. O quarto lado — a entrada — estava aberto. Mas virado para os campos, onde, supostamente, “não teria plateia”.

Uma pena que na época não existissem smartphones para registrar esse absurdo para a história. Câmeras até havia, mas não sei se alguém fotografou. Não falo das moças dentro do cubículo — elas nem usavam aquilo… ao menos parecia que não. Quem sabe. Eu mesmo fiquei tão chocado que evitava passar por perto. Mas só de ter a placa “Sala de Higiene das Moças”, já valeria uma foto. Para contar aos netos — senão ninguém acredita.

E quanto aos banheiros? Não havia nenhum. Foram cavadas algumas “valas”, supostamente para “essas necessidades”, mas só podiam ser usadas à noite — não tinham qualquer cobertura. Resultado: todos íamos “ao campo”. Imagine só — 400 pessoas durante dois meses e meio “adubando” a terra.

Os beliches nos barracões também eram feitos de gorbili. Parte de baixo — meninas, parte de cima — meninos. As garotas tentavam se isolar com panos, os rapazes não se importavam.

Cada um levava seu colchão de casa. Roupa de cama — também de casa. Só trocava se os pais trouxessem mais. Caso contrário, passava o tempo todo com o mesmo.

Banho? Uma vez a cada duas semanas. Alguns se lavavam com uma caneca de água, a maioria ficava suja até o próximo banho.

O dia começava às 6h da manhã. Meia hora para lavar-se e comer, mais 15–30 minutos de caminhada até o campo. Às 7h você já estava na plantação, com o sol nascendo. O trabalho ia até escurecer (12 horas!), até o algodão deixar de ser visível. Voltávamos a pé no escuro, em grupo — a “brigada” (os 100 do barracão). O chefe da brigada e o contador eram jovens professores do departamento de anatomia.

A meta diária era de 60 kg de algodão por estudante, se fosse “colheita limpa”. Para calouros urbanos, sem experiência, isso era impossível. O máximo que um novato conseguia — uns 40 kg, e ainda assim se fosse forte. As meninas colhiam entre 25 e 30 kg. Quem não atingisse a meta era levado ao “quartel-general” — uma reunião com todos os chefes de brigada e contadores, mais o coordenador do curso (vice-decano) e o representante do partido. Lá, te humilhavam, gritavam, ameaçavam. As meninas saíam chorando aos prantos.

A principal forma de pressão: ameaça de expulsão. E era real, porque você mal tinha começado o curso, e qualquer um com nota só meio ponto abaixo da sua podia te substituir.

Para quem, como eu, entrou sem apadrinhamento, a ameaça era terrível. Passar no vestibular tinha sido quase impossível. No Uzbequistão e no Cáucaso soviéticos, entrar num curso de medicina sem dinheiro ou influência era tarefa quase impossível. Só consegui graças aos promotores Gdlyan e Ivanov, que, no famoso “caso do algodão”, desmantelaram a corrupção generalizada da república. Por um curto período, as portas abriram um pouco — e eu entrei. Caso contrário, ou você tinha parentes na direção da universidade, ou pagava propina — 10 mil rublos soviéticos — com um salário de 100. Seria como pagar hoje uns 4 milhões de rublos.

Em resumo: nos aterrorizavam com essa ameaça. Alguns entraram em depressão. Mas mesmo assim, era fisicamente impossível cumprir a meta.

Porque quem nunca colheu algodão na vida não aguentava 12 horas por dia curvado. Nas fotos, o algodão parece na altura da cintura, como se fosse fácil. Mas o que colhíamos era o que as máquinas não conseguiam colher — planta baixa. E você passava o dia curvado.

Ou pior: fazia “pente fino”. A “colheita limpa”, ou “superior”, era o que sobrava após o trator passar. Aí era impossível juntar até mesmo 40 kg — cada gesto arrancava só um pedacinho.

A “colheita suja” era ainda pior — catar o que caía no chão, junto com folhas, galhos e sujeira. E a meta era o dobro: 120 kg.

República Socialista Soviética do Tadjiquistão, 1987. Algodão da nova colheita na área de secagem do colcos “Pobeda” (Vitória). Foto de Boris Korzin / ITAR-TASS

Só consegui cumprir a meta no segundo ano, depois do “batismo de fogo” do primeiro. E mesmo com experiência, 60 kg só dava para alcançar em campos “virgens”. Se o trator já tivesse passado, nem pensar. Por isso, viramos “partisans” — fugíamos escondidos para campos vizinhos, até 4 km longe, onde era o primeiro corte. Lá juntávamos 40 kg de manhã e, à tarde, completávamos os 20 restantes.

Por que isso era trabalho escravo?

  1. Era forçado. Você não podia se recusar — seria expulso. Nem doenças serviam de desculpa — mandavam doentes mesmo assim. Só uma garota escapou — filha de um alto funcionário do Partido Comunista do Uzbequistão. Todos os outros foram. Tinha um colega diabético — precisava de insulina três vezes por dia — também foi.
  2. Era trabalho extenuante, com metas absurdas! Um trabalhador livre produz o que pode, recebe pelo que produz. Ali, não. Meta fixa e punição se não cumprisse.
  3. Era trabalho não regulamentado. Nada de jornada de 8 horas. Era do nascer ao pôr do sol. Às vezes até com refletores. Sem folgas.
  4. Não era pago. Oficialmente, sim — mas o que se recebia não cobria nem o valor da comida!

Por comida? Só escravos trabalham. E nós nem isso conseguíamos — ficávamos devendo!

E a comida? Acham que era caviar, como alguns nostálgicos do “sovietão” gostam de dizer? Claro que não.

De manhã: um pedaço de pão, 10 gramas de manteiga, chá e açúcar. O chá tinha gosto de diesel — jogavam óleo combustível na lenha para acender o fogo, às vezes entornavam no tanque. Sempre havia manchas oleosas na superfície do chá.

Quem recebia pacotes de casa, às vezes tinha queijo ou salame. A maioria — nada.

Almoço e jantar: um mingau entre sopa e comida sólida, arroz ou macarrão cozido até desmanchar, com um molho feito de óleo vegetal, extrato de tomate e carne… ou o que sobrava depois de todo mundo roubar a carne. O óleo era horrível — dava azia.

Apesar do esforço físico e da fome, muitos estavam sem apetite. É que muita gente pegava hepatite tóxica por causa dos defensivos agrícolas usados no algodão.

Usavam o BuTIFOS — composto organofosforado, da mesma família dos agentes químicos usados como armas. Servia para fazer o algodão perder as folhas, facilitando a colheita com máquinas. Às vezes não funcionava — e mandavam a gente. As folhas ficavam grudadas com aquele veneno. E com essas mãos sujas a gente comia — nem sempre tinha água potável. Às vezes bebíamos água dos canais. Então, além de hepatite, pegávamos giardíase (lambliose).

República Socialista Soviética do Tadjiquistão, 1987. Equipes do destacamento aéreo unificado de Leninabad realizando a desfolhação das plantações de algodão. Foto de Boris Korzin / ITAR-TASS

Eu senti os efeitos no fígado e na vesícula por muitos anos.

Se você adoecesse, só ficava no barracão se tivesse febre acima de 38,5°C. Caso contrário — campo! Uma vez eu peguei algo, talvez vírus, talvez só gripe. Me mandaram ao campo. De tarde, desmaiei de exaustão. Caminhei quilômetros até o barracão. Caí direto no beliche. Febre de 39,5°C. Delirando.

Na colheita, era como estar preso. Sem arame farpado, sem guardas armados. Mas ninguém fugia — o medo da expulsão te prendia.

Até os pais perceberam a semelhança com presídio ou campo de concentração. Um deles visitou a filha de manhã, na hora de sair para o campo. Ficou chocado: “Cem estudantes, 17 a 18 anos, em fila. Ninguém ri. Todos sérios, cansados logo cedo. Parecem presos!”

E era isso mesmo: toda manhã acordávamos com dor lancinante nas costas, da lombar ao pescoço. Levar uns minutos só para conseguir se dobrar.

República Socialista Soviética do Tadjiquistão. Colheita mecanizada de algodão nos campos do sovjose “Moscou”. Foto de Vladimir Stechentsev / ITAR-TASS

Antecipando objeções dos que também foram a trabalhos agrícolas na URSS — na Rússia, Moldávia, Ucrânia — e não viveram esse horror:

Sim, a URSS era diferente em cada lugar.

Na Ásia Central, Cazaquistão, no Cáucaso — a legalidade era dez vezes menor que na RSFSR ou Ucrânia. Lá se aplicava perfeitamente a tese dos bolcheviques sobre a opressão adicional nas “periferias nacionais” — só que no “socialismo”.

Nós, de Tashkent, só enfrentávamos esse trabalho escravo quando virávamos estudantes. Mas, fora da capital, crianças eram levadas ao algodão desde o primeiro ano escolar! Não só no outono (colheita), mas na primavera (capina). Por isso, vinham para o curso com conhecimento escolar fraco. Muitos nem sabiam russo — e as aulas eram todas em russo. Passavam o primeiro ano sem entender nada. E depois… viravam médicos! Mas isso é outro tema.

Agora, sobre o trabalho escravo:

Estudantes e escolares eram usados como escravos não só no algodão. Por exemplo, depois do primeiro ano, passamos metade das férias num “batalhão de construção”. Construímos uma escola num bairro de Tashkent. Não recebemos um tostão. Depois, o filho de um promotor reclamou com o pai. Pagaram… 5 rublos! Por um mês e meio de trabalho. Sob 40°C. Todos os dias jogando 10–15 toneladas de mistura de concreto com a pá.

República Socialista Soviética do Quirguistão, 1988. Crianças da escola-internato do povoado de Kochkor-Ata, mobilizadas para a colheita de algodão, durante o almoço. Foto de M. Ashirbaev / Fotocronologia da TASS

E o mais absurdo: nem nos passava pela cabeça reclamar! Fomos tão acostumados pelo regime comunista a trabalhar de graça, à força, que nem cogitávamos exigir nada!

Sim, em outras repúblicas da URSS, mandavam estudantes à colheita de batata, hortaliças — também sem perguntar se queriam. “O partido mandou: ‘Tem que ir’, o Komsomol respondeu: ‘Às ordens!’”

Talvez as condições fossem melhores. Talvez a comida fosse decente. Mas o trabalho era forçado — e, portanto, escravo.

Bons senhores romanos e americanos também cuidavam bem dos escravos. Mas eles continuavam sendo escravos.

No Uzbequistão Soviético Socialista, o trabalho escravo era brutal. E até hoje, no “livre e democrático” Uzbequistão, estudantes e escolares ainda são forçados a colher algodão. Pesquise por aí.

Portanto, se você sente saudades profundas da URSS, vá até o Uzbequistão, experimente uma campanha de colheita de algodão. Eles sempre precisam de mão de obra. Segundo a OIT, só recentemente pararam de usar trabalho infantil. Depois, poste fotos e conte como foi. Vamos adorar ver. Não demore!

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